quinta-feira, 23 de junho de 2011

A morte de Delgado

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"Volta a falar-se do ‘caso Delgado’ e do assassínio do general, por causa de uma peça de teatro e do processo intentado por familiares de uma das personagens secundárias do drama (o major Silva Pais, último director da PIDE-DGS) contra o que consideram injurioso para a sua memória e para o seu bom nome.
A dita peça, ao contrário do livro em que se baseia, teria posto o major Silva Pais como ordenante ou mandante da morte do general. O tema saltou dos tribunais para a opinião pública e está a excitar — neste tempo de troikocracias e acertos de contas da festa democrática — as agora eleitoralmente melancólicas hostes antifascistas.
Não sou um especialista no tema, mas estudei-o por causa da biografia de Salazar (*). Ao contrário de Estaline, de Saddam Hussein e de inúmeros ditadores reaccionários ou progressistas, Salazar nunca mandou perseguir ou matar inimigos políticos no exterior. Não tinha esse costume e seria estranho que, com 76 anos, fosse iniciar vida nova.
Não havia móbil: em 1965, o general Humberto Delgado era um elemento ‘fraccionista’ na oposição antifascista.
Estava em guerra aberta com os comunistas, que nunca o tinham estimado muito, apesar de o terem tentado usar em 1958 como candidato frentista de recurso. Estava, também, em guerra com outros grupos de oposicionistas: por isso lhe estavam a cortar apoios em Argel.
Matá-lo — e ainda por cima em Espanha, um país e um regime com os quais havia relações pessoais e políticas ao mais alto nível — não tinha pés nem cabeça.
Quando Silva Pais contou o acontecido a Salazar, sabe-se que este ficou furioso, consciente da gravidade do crime e dos seus efeitos políticos. Foram estas as conclusões dos tribunais que julgaram o caso depois do 25 de Abril.
Por que é que, naquele dia, Delgado se foi encontrar naquele lugar com uma brigada da PIDE? Com certeza que não foi levado por salazaristas ou fascistas da sua confiança. Quem o convenceu que ia avistar-se com um grupo de antifascistas que o meteriam em Portugal para liderar um golpe ou uma revolução? E quem disse à PIDE que o general se ia entregar? ‘Arrependido’ seria uma boa peça de propaganda para o regime.
São estas as questões polemicamente levantadas por Henrique Cerqueira depois do 25 de Abril, e é desta ‘dupla armadilha’ que nasce a situação: Delgado percebe que quem o espera não é quem ele esperava e, corajoso, reage prontamente.
Casimiro Monteiro (antigo guarda prisional no Estado da Índia, considerado por muitos um natural born killer, homem de gatilho fácil), quando vê o general pronto a disparar, dispara primeiro e mata-o. Depois, porque ‘um abismo chama outro abismo maior’ — e no que deve ter sido uma dessas cenas descontroladas com medo e instintos à solta —, matam a testemunha e acompanhante de Delgado, Arajaryr Campos.
Umberto Eco tem um texto nos Seis Passeios pelos Bosques da Ficção sobre as regras do romance histórico: d’Artagnan pode passear em Paris por uma rua que talvez não existisse ali no século XVII, mas os Mosqueteiros não podem matar Richelieu, porque sabemos que o cardeal morreu em casa, tranquilo e em paz.
Pode a ficção pôr o major Silva Pais a ordenar a morte de Humberto Delgado, quando concluímos que tal morte era absurda na perspectiva dos interesses que ele próprio defendia e que nada indica que o tenha feito?
Será isso um crime ou apenas uma ‘liberdade dramática’ antifascista, aceitável de acordo com a regras dos ‘bons’ e ‘maus’ desta nossa História?
Sabíamos já que um director da PIDE não poderia nunca ter bom nome. Ficámos a saber que não tem sequer direito a um nome menos mau, podendo e devendo imputar-se-lhe toda a espécie de crimes, independentemente da sua veracidade, como quem passeia por um bosque. E sem que os descendentes possam reagir.

* Jaime Nogueira Pinto, António de Oliveira Salazar — O Outro Retrato, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010, 7.ª Edição, pgs. 210-214."

Jaime Nogueira Pinto
in "Sol", 17 de Junho de 2011.

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